quinta-feira, 14 de maio de 2009

Perdido num Livro

Tornei-me errante, de capítulo para capítulo, de página para página, deixando-me aprisionar em enredos que desconhecia, dialogando com personagens que me eram completamente estranhas e, em alguns casos, hostis. Sentia-me perdido e ameaçado. A minha existência era agora tão insignificante e minúscula como um ponto de interrogação ou uma vírgula daquele livro interminável e sufocante. Sobretudo como um ponto de interrogação, já que tudo à minha volta me suscitava dúvidas e perguntas para as quais o livro não tinha resposta.
Corri pelas margens do texto, tentando afastar-me de tudo quanto no livro era intriga, mistério e sobressalto. Pensei mesmo em suicidar-me, atirando-me da página abaixo ou tentando cair fora do livro. Mas não logrei atingir nenhum desses objectivos, porque o livro operava o prodígio de me devolver sempre ao coração do seu enredo, envolvendo-me em novas peripécias.
(...)
Sentia que a palavra «salvação» me abandonara e que nunca chegaria a fazer parte do meu parco vocabulário de aprendiz do mundo. Estava perdido. Queria rezar, mas não sabia nenhuma oração de cor, porque os meus pais não eram devotos, nem a ideia de sagrado tinha o que quer que fosse a ver com a minha casa.

José Jorge Letria in A Mão Esquerda de Cervantes

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